sábado, 30 de março de 2013

Sobre a serventia da literatura



 
Ontem teria seria um dia tão normal quanto os outros se não fosse por uma pergunta feita a mim.
Pela manhã, fui ao dentista, rotina minha desde sempre e enquanto ele realizava os procedimentos me perguntou: “Para que você estuda literatura?”.
É engraçado, dentistas sempre querem que você fale enquanto mexem em sua boca e o pior é que você sempre tenta falar!
Ele continuou:
- Eu gosto de literatura, mas não entendo muito não. Que tal largar a literatura e vir para a odontologia? Seria bom. O que me diz?
Eu tive que tirar aquele sugador infernal da boca e rir. Ah se eu fizesse odontologia...
Meu odiado e querido dentista estava terrivelmente perverso a esta altura eu esperava tudo dele.
Para quê literatura? Para quê poesia? Estamos acostumados a sempre atribuir sentidos que de certa forma geram um valor para as coisas que queremos fazer. É comum pensar: se fulano é médico vai curar, se é arquiteto vai construir, se é advogado vai obter respeito e etc. Bem, isso é uma minimização das profissões mas azemos muito isso. O fato é que quando se chega à literatura, é super comum que a maioria das pessoas teimem em querer que ela não sirva de nada, assim como a poesia. Então se eu fosse problematizar escolheria falar do nada e de suas faces. E aí, fico pensando: que diabo de pergunta! Eu poderia responder simplesmente:
-Estudo literatura porque gosto.
Ele entenderia e o assunto estaria morto e enterrado.
Acontece que não posso responder dessa maneira, nem ao meu dentista, nem a ninguém que me pergunte isso, de certa forma estou convivendo tão densamente com este mundo que a resposta, “porque gosto” causaria certo desconforto a mim. Aqui uma confissão: muitas vezes me fiz tal pergunta. Acho que inconscientemente eu buscava uma razão para minha escolha, uma serventia e demorei muito até perceber que a literatura é uma explosão, uma força, uma tensão que nos impulsiona. Que mexe conosco, mexe com tudo por dentro e por fora. A literatura é intensidade, ela é movimento, é vida.
A literatura é uma possibilidade de caminhada, aviso, tem que ter coragem para este caminho. Um caminho trabalhoso e até pedregoso, que nos impõe seus desejos. Fazer literatura de certa forma é permitir que seja intensificada a vida, a vida colocada como possibilidade do real. Através dela outros corpos surgem, são construídos para que a arte apareça. Ela é força geradora. A literatura nos faz sentir as intensidades, os impactos, os transtornos, as amplificações de sentido. Quando nos jogamos descobrimos a afetação que podemos sofrer com um texto literário. Ainda me lembro do grande impacto que sofri quando li a ‘Terceira margem do rio’ de Guimarães Rosa. Fiquei imóvel diante da beleza desse texto, não sabia o que pensar, precisei reler, escavar entre seus espaços e preenchimentos. O bom de se fazer literatura é sempre está a disposição da surpresa e do inesperado.
Tenho um amigo que diz: “literatura é vertigem”. É, na vertigem que damos lugar aos outros nomes, aos outros corpos. É na vertigem que podemos perceber o que está implícito. É na vertigem que a literatura se mostra como intensiva, intempestiva e progressiva. Ela tem a ver com a minha vida, com a sua vida, com todas as vidas.
Eu disse isso ao meu dentista, depois que me livrei do sugador e das agulhadas, ele meio que pasmo, retirou a máscara e falou:
- Não venha para a odontologia não, seria um erro. Na próxima consulta me traga um livro, ou me sugira algo que possa me sacudir. Acho que eu preciso ler mais, não tenho experimentado a vida ultimamente.

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